A verdade (e a mentira) sobre a utilidade dos testes com animais
Para filósofo, as
pesquisas realizadas com animais servem mais para estimular o mercado
de consumo com novos produtos que para melhorias na saúde dos seres
humanos
A
“revolução dos beagles de São Roque” está rendendo. E muito
bem. Já estava mesmo na hora de discutirmos nacionalmente também
essa questão, a da utilidade ou não de determinados tipos de
pesquisa e o envolvimento com a educação para a crueldade, que pode
muito estar atrelada ao modo como se prepara a mão de obra para os
laboratórios.
Coloquemos
então na mesa a questão objetiva do debate: os testes com animais
são mesmo uma necessidade? Os
testes de laboratório com animais, de um modo geral, apontam para
uma única “moral da história”: sofrimento atrai sofrimento. Os
testes submetem nossos parceiros de vida na Terra a dores e incômodos
inauditos. Não se trata de feridas apenas. Muito menos a barbárie é
só a de arrancar um olho ou forçar um animal a comer até explodir.
O que ocorre é a produção de tumores cancerígenos, deformações
internas e externas, mal estar durante toda uma vida. Esse sofrimento
todo é pago no altar do bem estar humano? Não! A maior parte dos
laboratórios que lidam com testes, no mundo todo, fazem pesquisas
encomendadas direta ou indiretamente antes pelos setores militares
que pelos ditos setores da saúde. O
que se quer saber é o que é que pode dizimar o homem, fazer o homem
sofrer, e quanto o homem pode aguentar tendo ingerido substâncias X
ou Y. O que se quer é saber como matar de modo mais eficiente. Isso
é tão verdade que, hoje, nenhum cientista responsável arrisca
afirmar que o HIV, que provoca a AIDS, não foi produzido em
laboratórios ligados a tarefas militares. Bem,
mas uma parte dos laboratórios que se utiliza de testes em animais o
faz em função das demandas do setor de saúde, não é verdade?
Não! A parte da pesquisa que não é direta ou indiretamente
atrelada ao campo militar, serve antes ao dinheiro que à saúde. Os
próprios cientistas têm insistido nesse dado: mais de 70% das
pesquisas que envolvem testes com animais, e que se diz desligada da
área militar, se faz não em torno da busca para curas de doenças,
mas em torno da criação de variações de produtos que possam
induzir novos consumos. Em muitos casos, até parecem ter a ver com
doenças. Mas não tem. O que ocorre é que, criado o produto, aí
então se inventa uma deficiência orgânica, ou seja, alguma
“doença”, e em seguida mostra-se a cura. Em alguns casos a
doença é criada junto com a cura! As drogarias são supermercados -
todos sabem disso. Mas os conservadores fingem não ver. As
indústrias de cosméticos e higiene pessoal, alimentos, suplementos
alimentares, drogaria para a geriatria e mesmo a indústria da
produção de remédios trabalham com a perspectiva de lucro imediato
como prioridade, colocando a questão da descoberta da cura de
doenças que realmente nos aflige em segundo plano - às vezes em
plano nenhum. Mesmo as universidades públicas, no mundo todo, têm
trabalhado nesse sistema. Os financiamentos saem antes para a
pesquisa que busca criar produtos para a indução de consumo que
para a pesquisa que visa a solução de problemas de saúde da
população. Nem mesmo as pesquisas para “doenças de ricos” têm
prioridade diante da prioridade da criação de produtos que possam
ampliar as possibilidades de consumo. Desse
modo, o supérfluo do supérfluo governa de um lado, o necessário
para a indústria da morte governa do outro. Os animais sofrem para
que nós, depois, possamos sofrer com a ideia da “guerra segura”
e com a péssima ideia de que precisamos comprar mais coisas do que
necessitamos. Não há lado bom nessa história. Não há mocinho
nesse faroeste. É
bobagem dizer “isso é o capitalismo”. Sim, é. E daí? Dizer
isso é dizer o nada. Ou melhor, é dizer o tudo em um grau tão
genérico que é dizer o nada. O que é necessário é perceber que
nenhum dos dois grandes blocos de interesses - o militar e o
financeiro - que sustentam os laboratórios que, por sua vez, causam
sofrimentos nos animais, diz a verdade sobre a necessidade de testes
em animais. Ter animais em laboratórios nem é uma solução “a
mais barata”. Os animais estão lá porque o tipo de pesquisa que
se faz não é para nos curar de algo, mas para a guerra e para a
ampliação inchada do mercado.
Estamos
diante da maior mentira do século. Uma mentira contada por gente que
está atrelada à fabricação da paz, que é na verdade a indústria
da guerra e da morte. Uma mentira também contada por gente que está
atrelada à fabricação do bem estar, que é na verdade a indústria
do dinheiro e do falso bem estar. Os estudantes que entram nas
universidades em cursos que fornecem mão de obra para os grandes
laboratórios do mundo todo devem falar a mesma língua. O jogo é
duro. Uma única pequena conversa dissidente, questionando o
sofrimento dos animais, e o estudante que a promoveu é visto como
“não tendo vocação”. É fundamental que o estudante seja antes
de tudo um vocacionado para a tortura, caso não, é tido não como
uma pessoa sadia mentalmente, mas como um incompetente para as
ciências. Os que negam isso são, dentro dos departamentos das
universidades, os que mais zelam para isso aconteça. O policiamento
nesse ambiente é uma constante. Não
é necessária uma revolução mundial comandada por algum Che
Guevara para parar isso de modo a redirecionar tal indústria de
horrores. Basta que a cada dia possamos fazer protestos como os que
foram feitos contra o Royal, e que apavorou toda a parte da mídia
mais à direita (calando a esquerda, que não raro, na sua parte
tradicional, é adepta de um iluminismo tacanho). Ali, no protesto
contra o Instituto Royal, um nível de consciência pelos direitos
dos animais reapareceu em novo patamar. São passos assim que criam
níveis diferenciados e ampliados de consciência. É comum que
pessoas de formação científica, inteligentes, diante dos
protestos, voltem para as suas casas e comecem a pesquisar sobre o
assunto, e então entrem para as fileiras dos que já não podem mais
admitir o espalhamento da crueldade como algo banal. Os
protestos não clareiam as coisas somente de um lado, mas de todo
tipo de lado. E o número de pessoas que acha que sairá ganhando com
a indústria da morte e com a indústria do
dinheiro-que-falseia-a-felicidade paulatinamente decresce - isso é
uma tendência mundial. Nosso desenvolvimento moderno tem sido assim.
Temos reformulado e melhorado nossas práticas de vida, em vários
setores, dessa maneira. Deixaremos
de usar animais em teste do mesmo modo que temos procurado nos livrar
de agrotóxicos e do mesmo modo que não suportamos ver uma pessoa
pertencente a uma minoria ser humilhada. Faremos isso exatamente
porque sabemos onde está a mentira, e vamos, em cada luta setorial,
conquistar mais gente pelo coração, e integrá-los no trabalho da
razão. Essas coisas vão andar mais rápido do que se imagina. E a
ciência não vai perder com isso, ao contrário, vai sair ganhando. Nietzsche
dizia que a ciência não pode ser deixada sozinha, sem comando. É
verdade! Temos de tirá-la do comando que hoje está nas mãos da
Morte e do Dinheiro. Temos de coloca-la sob o nosso comando, os que
não querem que para se criar um esmalte ou um tônico capilar fajuto
para uma seborreia fajuta, um cão tenha que ter o fígado inchado
durante 6 anos, mantido no cativeiro com dores intensas.
Paulo
Ghiraldelli, 56, filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ
http://ghiraldelli.pro.br
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